sexta-feira, 16 de novembro de 2007

TIBIRIÇÁ E A TRAJETÓRIA PAULISTA

Detalhe de um mapa comemorativo da Revolução de 32. 




Confluência entre os rios Paraná e Rio Pardo antes da formação do lago da Usina de Porto Primavera. A centro a ilha Tibiriçá (hoje inundada) e sobre ela a ponte que liga São Paulo e Mato Grosso do Sul. Liga tamabém as rodovias Manoel da Costa Lima (MS) e Raposo Tavares (SP). Acima e antes da curva do rio Paraná, a Vila e o antigo Porto Tibiriçá, fundado em 1907. Mais acima a cidade de Presidente Epitácio, fundada na década de 1920 com a chega dos trilhos da E.F. Sorocabana.


Comparando a história do Porto Tibiriçá com a história de outras localidades entendemos de imediato que o tempo realmente é relativo, pois aquilo que nos parece velho e antigo, em outros lugares é novo e recente. É uma localidade velha para quem lê os relatos dos primeiros desbravadores, imaginando que o fundador do Porto Tibiriçá viveu nos tempos remotos da colonização portuguesa. Muito pelo contrário, o Porto Tibiriçá foi fenômeno do pós moderníssimo século XX, o século mais agitado, mais científico e tecnológico que já viveu a Humanidade.

Apesar do isolamento, dos perigos da selva, da precariedade de recursos, em 1907 o mundo já era bem pós-moderno. Paris era uma cidade de três milhões de habitantes, tinha galerias de compras mais sofisticadas que os shoppings atuais e já ditava a moda. Em Londres e Nova York já existiam metrô, jornais e revistas de grande circulação e exposições de arte e tecnologia.

Quando os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana estavam avançando na direção das margens do rio Paraná, em 1922, em São Paulo estava sendo organizada a Semana de Arte Moderna, uma verdadeira revolução estética na arte e na comunicação. Em 1924, durante as agitações tenentistas, Juarez Távora, aliado de Isidoro Dias Lopes, tentou fazer do Porto Tibiriçá um marco da revolução mudando o nome do lugar para homenagear o irmão morto em combate.

Quando Porto e a Vila Tibiriçá estavam no seu apogeu produtivo, entre 1945 e 1950, o mundo estava em plena Guerra Fria e no auge da pesquisa nuclear. Em 1967, quando o SNBP estava encerrando seus serviços na região e a Vila Tibiriçá sendo desativada para ser vendida e ocupada por frigorírico, os Beatles já havia atingido o ápice na carreira deles e já se preparavam para dissolver a banda de rock mais famosa do século.

E finalmente, em 1969, quando, fazendeiros e posseiros rurais do Campinal disputavam a bala um pedaço de terra que mais tarde seria inundado pelo lago artificial, os astronautas da Apolo 11 estavam desembarcando na Lua e pensando na conquista do Espaço Sideral.


A OCUPAÇÃO TERRITORIAL PAULISTA


O pioneirismo paulista é provavelmente uma das mais importantes epopeias registradas nos arquivos da história brasileira, repleta de atos heroicos e acontecimentos incomuns.

Foram três os momentos do ímpeto conquistador que impulsionaram a marcha de ocupação territorial que daria origem ao mais rico e próspero estado da federação.

O primeiro avanço aconteceu na colonização mercantil do século XVI, com a formação das Capitanias Hereditárias, na qual o engenho vicentino de Martins Afonso de Souza foi o modelo empreendedor. São Vicente e Pernambuco foram praticamente as únicas capitanias que vingaram como unidades políticas e produtivas, segundo as exigências dos sistema colonial; e foi por causa delas que Portugal resolveu implantar o Governo Geral. Os vicentinos partiam do litoral em muitas direções em busca ouro, diamantes e da mão-de-obra indígena, compulsória.

O segundo avanço, já no século XIX, foi marcado pela expansão cafeeira, inicialmente na direção da Serra da Mantiqueira e posteriormente para o meio Oeste, na grande região de Campinas e Ribeirão Preto.

E finalmente, já na primeira metade do século XX, por meio da enorme malha ferroviária, derrubando matas, abrindo novas fazendas, espalhando estações de percurso e distribuindo grandes contingentes humanos em busca de trabalho e do sonho de felicidade.

Primeiro os caminhos de terra e água e depois os trilhos de ferro, do litoral vicentino até às margens do rio Paraná, de olho no infinito sertão.

Portanto, o Porto Tibiriçá é também, como São Vicente é para o Brasil, a “cellula-mater” do Oeste paulista e do Pontal do Paranapanema. Não havia outra forma mais prática e eficiente de atingir essa imensa região, ainda despovoada em pleno século XX, se não pela via fluvial Tietê-Paraná, contorno natural que economizou tempo e recursos tanto das novas “Entradas” da Comissão Geográfica e Geológica do Estado, quanto da nova “Bandeira” da Companhia de Viação São Paulo-Mato Grosso.

Muito antes que as principais cidades da região fossem fundadas e adquirissem o status de vila, distrito ou municipalidade, o Porto Tibiriçá e a Estrada Boiadeira se organizavam como estabelecimentos empresariais e fatores e socioeconômicos que estimulariam as futuras instituições políticas da Alta Sorocabana.

Os autores desse evento histórico que deu origem ao município de Presidente Epitácio e outros da dessa região foram o Capitão Francisco de Aguiar Whitaker e todos os seus companheiros da expedição. Estava com ele o mandatário paulista Coronel Paulino Carlos de Arruda Botelho, que se tornou nesse evento histórico e político o primeiro administrador do Porto Tibiriçá. Estes, com o auxílio de 25 homens, cumpriam uma das metas da Diederichsen & Tibiriçá, futura Companhia de Viação São Paulo - Mato Grosso, para estabelecer um ponto de comunicação viária entre os dois estados e concluir as obras da Estrada Boiadeira, sua principal base de negócios na região. O porto recebeu o nome do médico Francisco Tibiriçá, sócio da empreitada e primo do então governador do estado, Jorge Tibiriçá Piratininga.

Portanto, o Porto Tibiriçá e Presidente Epitácio não possui apenas um fundador. Na verdade foram todas pessoas que participaram diretamente desse evento histórico, como testemunhas e agentes sociais transformadores. É claro que aqueles que comandam esses empreendimentos são habitualmente elevados à categoria principal dos agentes históricos; e que os liderados permanecem anônimos, obviamente por causa da sua “insignificante” posição social. Ainda assim, mesmo que persista o vício das narrativas épicas, que só contemplam e nomeiam os maiorais da pirâmide social, é preciso que se faça uma grave correção, já que o Capitão Francisco Whitaker não estava sozinho na empreitada. Junto com ele também estava o Coronel Paulino Carlos e Francisco Sanches Figueiredo, figuras de alta importância social na época, marcando presença como chefes políticos regionais. Paulino Carlos e Francisco Sanches não eram apenas figuras acompanhantes, mas ali estavam como símbolos de poder da velha oligarquia paulista demarcando um antigo território que haviam subtraído dos indígenas. Tanto é que antes e ao ser concluída a empreitada, ambos foram foi rapidamente reconhecidos e investidos como autoridade locais pelos empreendedores e investidores.

Radicalmente, devemos lembrar ainda que o Coronel Francisco Sanches já havia fincado ali as bases da futura Vila Tibiriçá quando em 1906 se instalou, abriu uma clareira na mata e preparou o terreno para a chegada da flotilha. Mesmo com a reação destruidora e violenta dos indígenas, irritados com o seu gesto conquistador. Acrescentamos ainda a atuação providencial do Sr. Alonso Junqueira, administrador da Fazenda Novo Niagara, próxima a Estação de Mandury, que muito auxiliou na organização do acampamento e da futura Vila. Ele chegou em Tibiriçá uma mês após o desembarque da flotilha, porém teve a missão de estabelecer ali um posto avançado para fazer a ligação com a estrada que vinha de Indiana. Segundo o próprio Whitaker, o Sr. Junqueira, fundador de Indiana, foi a pessoa que levantou o “primeiro rancho coberto de zinco que este sertão vio”. Todos esses homens e seus serviçais são também, portanto, ao nosso ver, legítimos fundadores do Porto Tibiriçá e de Presidente Epitácio, tanto quanto Whitaker, bem como os membros da famosa viagem, que até hoje permanecerem anônimos.
São também, não podemos esquecer, usurpadores dos territórios indígenas, em nome do progresso. Há que se considerar também o papel de cada um investidores e sócios da Companhia, cujos recursos materiais permitiram a realização da empreitada, cujos custos foram financiados por eles. Esses sete investidores foram responsáveis diretos pela estruturação física do Porto Tibiriçá e assim o mantiveram por longos anos até que, por causa das mudanças geradas pela II Guerra Mundial, o governo federal fizesse a encampação por meio da SNBP-Serviço de Navegação da Bacia do Prata.

OS PORTOS DE SÃO VICENTE E TIBIRIÇÁ 


A história do Oeste paulista é muito mais antiga do que se imagina, pois remonta o período pré-cabraliano, passando pelos tempos inesquecíveis da exploração colonial e abrangendo a expansão desenvolvimentista do II Império e da Primeira República. Enquanto São Vicente foi o marco de partida da trajetória histórica do Brasil e estado de São Paulo, o Porto Tibiriçá foi o ponto de chegada dessa jornada de cinco séculos de pioneirismo e ocupação territorial.

A investigação histórica tem as suas dúvidas, perguntas que não se calam e que dão sentido filosófico ao trabalho de pesquisa e síntese historiográfica. Gostaríamos de poder responder, por exemplo, quem eram os 25 homens que acompanhavam o Capitão Francisco Whitaker e o Coronel Paulino Carlos e que permaneceram em Tibiriçá para dar início à construção do porto; de onde eles vieram, quais eram seus nomes e sobrenomes. Que qualificação e experiência profissional eles tinham para participar dessa empreitada? Eram mateiros (cai-pira) ou sertanistas, simples homens rústicos e aventureiros? Quais eram as suas crenças e perspectivas de vida? Eles permaneceram no Porto Tibiriçá ou na região? Deixaram descendentes ou foram ganhar a vida em outras empreitadas?

Tudo isso nos faz refletir que esses fatos ocorridos entre dezembro de 1906 e janeiro de 1907, narrados de próprio punho pelo Capitão, são mais do que simples datas perdidas nos arquivos do passado. Qual é o seu verdadeiro significado histórico? Quais poderiam ser as repercussões políticas e culturais diante da constatação de que o Porto Tibiriçá não foi apenas uma vila de moradores de uma empresa que, como tantas outras da mesma época, já não existem mais?

As tradições são fortes e duráveis, porém muitas delas são construídas em cima de inverdades, produto do imaginário humano e principalmente da necessidade de dar explicações míticas para coisas que a razão não consegue explicar. Não é coincidência que a palavra “tradição” possui a mesma raiz das palavras “tráfico” e “traição”. A tradição inventada toma força social quando ela preenche um vazio cultural deixado pela ausência da verdade. Como dizia o dramaturgo Dias Gomes no texto de Roque Santeiro, a tradição inventada é a arte de transformar “aquilo que foi sem nunca ter sido”. Presidente Epitácio, como todas as outras cidades, possui suas histórias e também seus mitos e suas tradições inventadas.

Quais são elas? Como podem ser diferenciadas?

Essas questões só podem ser solucionadas quando os fatos, bem documentados e questionados, substituem os mitos. Mesmo assim, diante da impossibilidade da verdade estar acessível a todos, os mitos persistem, se incorporam às crenças e passam a fazer parte da mentalidade e dos hábitos do povo.

Essa é diferença entre o mito e a História, entre a facilidade de realçar o 1º de janeiro de 1907 como uma nova tradição, uma nova crença cívica, assimo como a possibilidade de questionar, por exemplo, por que a cidade adotou um nome que nada tem a ver com as suas origens mais remotas e suas verdadeiras raízes históricas.


FIM DOS TRILHOS, FIM DO MUNDO



 
Detalhe do galpão da Estrada de Ferro Sorocaba. Foto: Gui Duque



O Porto Tibiriçá foi um nome criado pela Companhia Viação São Paulo-Mato Grosso em 1907. Presidente Epítacio foi a denominação de uma estação da Estrada de Ferro Sorocabana em 1924.  

Esse lugar já foi o fim do mundo, os “limes” da civilização paulista e das fronteiras do Brasil. No começo do século XX toda essa região cortada pelo rio Paraná era vista como porta de entrada para uma interminável floresta tropical, praticamente intacta e que começava imediatamente após a travessia dessas águas que os índios chamavam de Grande Mar. Assim como hoje os turistas buscam os confins do Acre, Rondônia, Amazonas e Roraima para conhecer a selva, o Porto Tibiriçá era o ponto de encontro e partida de expedições oficiais, científicas, militares e de turismo, por meio dos vapores da Companhia de Viação. As missões religiosas dos freis capuchinhos e do antropólogo e sertanista alemão Curt “Nimuendajú”; as pesquisas de medicina tropicalista do Dr. Adolpho Lutz; e também a movimentação das tropas tenentistas de Juarez Távora são provas dessa grande atração que o rio Paraná exercia entre os diversos tipos de viajantes em busca da aventura e do desconhecido. Tudo isso acendia a imaginação dos turistas, que ficavam sabendo dessas coisas pelos relatos dos expedicionários, publicados em livros ou nas páginas dos jornais e revistas.

Despertava também, em pleno século XX, o antigo espírito de aventura da Capitania Vicentina, herança que o geógrafo francês Pierre Monbeig (Pioneiros e fazendeiros de São Paulo) identificou com “psicologia do bandeirante”. No início dos anos 1930, quando lecionava na USP, Monbeig vasculhou o interior paulista servindo-se da malha ferroviária que avançava em direção ao Oeste do estado para estudar as grandes transformações da paisagem e da experiência social. Observou mais detidamente os motivos humanos recentes do desbravamento florestal da Alta Paulista:

“No curso de minhas viagens, muitas vezes encontrei moços, nascidos nas grandes cidades, antigos alunos de escolas de Medicina, de Agronomia, de Engenharia, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, que viviam duramente; em meio de gente rude e bruta, e experimentavam evidente alegria na vida sertaneja. Nisso contava muito o lado esportivo. Mas também a sensação de criar, o sentimento de manter uma tradição e o orgulho de contribuir para engrandecer o seu país. Há nos brasileiros, mais frequentemente nos de Minas Gerais e de São Paulo, uma espécie de instinto que os impele sempre para adiante, para além da civilização. Não é raro ouvir dizer de um homem e de sua família que não podem ouvir o silvo da locomotiva. São os que sempre moram um pouco além da estação terminal de uma ferrovia. Quando esta prolonga os trilhos, embrenha-se o homem mais pra dentro do sertão. Gosta esse tipo de homem dos vastos espaços desertos, onde pode viver longe dos constrangimentos sociais. Trata-se muitas vezes de um caçador ou de um criador de gado. Nas margens do rio Paraná, do Tietê, encontram-se famílias que vivem da caça e da pesca. Preferem outros o nomadismo do boiadeiro que, conduzindo boiadas provenientes de Goiás, do Mato Grosso e de Minas Gerais, encaminham-se para as pastagens paulistas. Gente pobre, na maioria, frequentemente negros, mas também outros que possuía terra e abandonado casas nas cidades de São Paulo e Minas Gerais, desistido da família, estudo, profissões, liberais. Vai diminuindo essa espécie, pois quase já não há lugares onde o caminhão não atinja”

Na década de 1930 o Porto Tibiriçá, como seria Presidente Epitácio trinta anos depois, era estrela turística de cartões postais que circulavam nas grandes cidades. Éramos vistos não somente como a “Amazônia” daquela época, mas também, de certa forma, a “África” da bacia dos rios platinos.

Escritores e leitores sempre compartilharam um olhar exótico e pitoresco do sertão do extremo Oeste paulista. Isso valia também para últimas cidades e estações de trem, sobretudo porque, além de ter conservado muitas das suas características selvagens, elas ainda estavam bem próximas da então exuberante floresta mato-grossense.

No livro “Pedro Fineza”, a escritora Arthuzina de Oliveira D’Incao, também em narrativa recente, conserva para si a visão de uma época muito remota, alimentando também na imaginação dos seus leitores cenas de uma Epitácio sertaneja, lugar de grandes mistérios e perigos, perdido nas mais longínquas distâncias:


“Fernão sentia fome e em vão procurava pelos bolsos um níquel que lhe permitisse aplaca-la. Haviam-lhe carregado tudo: até as abotoaduras de brilhantes e a cinta de fivela de ouro. Andou a esmo pelo lugarejo, agora iluminado pelo sol. Viu, rente às casas rústicas de tábuas, a mataria pujante vedando os horizontes. Porto Epitácio era apenas uma clareira aberta em plena mata. Uma ruazinha sem traçado fixo, em frente à modesta estação, em torno da qual toros de todos os tamanhos espalhavam-se, esperando embarque. Fernão quedou-se longo tempo olhando. Continuava temendo a companhia de outrem. Hoje mais que ontem. Após o acontecido de véspera divisava em cada fisionomia sorrisos de mofa pela sua ingenuidade. Nunca ouvira falar em Porto Epitácio, mas pelo nome deduziu achar-se à beira de algum rio. Procurou-o com os olhos. Não divisando, resolveu encaminhar-se a passos lentos para o lado em que a mataria se avistava mais distante. Repentinamente, avistou-o – amplo- a perder de vista. Prateado, salpicado de pontos luminosos e de verdes ilhotas. Surpreso, Fernão pensou, de início, estar à beira-mar, depois achou a água tranquila demais. – Devia ser rio. Mas que rio! Buscou alguma reminiscência de seus passados estudos geográficos e não encontrou – De rios conhecia apenas o Tietê e o Paraíba. Ouvira falar no Amazonas, mas ficava muito distante..."

Na literatura infanto-juvenil o sertão epitaciano também reinou no imaginário de muitas gerações de leitores. Na famosa coleção do escritor Francisco de Barros Jr., do início dos anos 1960 e publicada por sucessivos anos pela Edições Melhoramentos, Presidente Epitácio recebe a visita de três escoteiros que vão viver nas barrancas do rio incríveis histórias que não deixariam nada a dever às aventuras de Tintin, Tarzan ou do Fantasma.



"Do lado de São Paulo, a majestosa floresta havia recuado da margem por muitas centenas de metros, abatida pelos tiradores de madeira e lenhadores. As derrubadas eram enormes e acompanhavam o curso do rio, onde, para facilidade de embarque das toras e da lenha, havia uma sucessão de rampas; em algumas estavam atracadas as grandes barcaças, rebocadas por possantes motores a gasolina. Era uma desolação. A floresta virgem era levada para as fornalhas da E. F. Sorocabana e seria reduzida a cinzas. Não se via uma roça de milho, algodão ou plantações de café que de certo modo compensassem a devastação. De espaço a espaço, choupanas miseráveis de pau-a-pique, cobertas de folhas de coqueiro, parecendo abandonadas. Os seus moradores estavam no âmago da floresta, lançando por terra os gigantes centenários e regozijavam-se quando uma perobeira ou jequitibá de trinta ou quarenta metros de alto ruía fragorosamente, deixando uma clareira. Dentro de poucos, de muito poucos anos, desapareceriam a floresta e desapareceriam os veados, os porcos do mato, as antas, os macacos, os macucos, jacus, jacutingas, enfim, todos os seus habitantes terrestres e alados, tal como já aconteceu na maior parte do nosso querido São Paulo."


Em certa ocasião, visitando a famosa Estância Boiadeira, em Anaurilândia - na companhia do José Feitosa- conhecemos a emblemática sede dessa famosa fazenda de invernada, especialmente a sala de armas, onde existia muitos “armários”, no sentido literal da palavra. Curioso também foi descobrir ali, num celeiro, dezenas de guias de embarque de gado na travessia Porto XV-Tibiriçá, muitas delas assinadas pelo meu avô Maurício Xavier Duque. Ele sempre dizia que o grande interesse dos turistas pelo Mato Grosso eram as caças, devido a abundância de animais num período que não havia nenhum tipo de controle ou proibição.

Na nossa infância conhecemos muitos caçadores. Eles eram vistos como pessoas ousadas e corajosas. Ao contrário de hoje, eram admirados por suas façanhas. Naquela época matar animais silvestres era normal, um hobby muito admirado, pois os caçadores exibiam em suas casas ricas coleções de armas, acessórios e também os restos mortais dos animais que eles abatiam impiedosamente em suas aventuras. A moda exótica daquela época mandava empalhar os bichos e exibi-los nas paredes ou nos cantos da sala de visitas. Aquelas cabeças de animais presas nas paredes, que normalmente a gente só vê em filmes antigos, era muito comuns nas casas onde residiam os caçadores ou então nos sítios e fazendas. Alguns fazendeiros tinham lembranças e fotografias de safaris realizados na África e na Austrália, como as que vi na sede da fazenda Santa Sofia, em Presidente Venceslau.

Em Tibiriçá a volta da caçadas era motivo de muita expectativa para os familiares e vizinhos dos caçadores. Perto de casa morava o Seu Oswaldo Valério, caçador muito conhecido na região e que atraía muitos de seus amigos. Toda aquela molecada de Tibiriçá se aglomerava ao redor das carrocerias para ver os animais mortos que eles traziam. Eram veados, antas, capivaras, catetos, pacas, onças, jacarés e tantos outros que não lembro mais. Só não esqueci dos olhos abertos dos animais maiores, estendidos sobre a lona manchada de sangue. Experimentei pedaços de carne de muitos deles, especialmente preparados. Achava esquisito o cheiro e sabor, tão forte eu confundia o paladar. Dizem que os caçadores são marcados pelo destino e sempre acontece algum tipo de tragédia em sua família, com pessoas que eles amam demais, como um sinal de que eles devem parar ou expiar as dores causadas os animais abatidos. Superstição ou não, todos os que eu conheci passaram por esse momentos terríveis de provação ou expiação.

Quando afirmamos que O Porto Tibiriçá é filho do espírito da antiga colonização ibérica e do impulso explorador sertanista vicentino não nos referimos apenas às ondas exploradoras mais recentes, resultantes da pressão econômica cafeeira e das ferrovias. A herança é muito mais antiga e remonta os tempos primitivos da Capitania e até da mentalidade cruzadista e aventureira da expansão mercantil e da época dos descobrimentos dos séculos XV e XVI:

“A colonização foi, antes de tudo, a aventura da conquista e ocupação do sertão. Para os colonizadores portugueses, as terras americanas significavam um imenso vazio a ser preenchido com seus interesses, concepções e valores. Um grande deserto, um desertão como as representavam. Daí a origem do nome sertão. Um sertão que, como o Mar Oceano, exercia atração e gerava medos. Medos de seres reais e imaginários, de animais e plantas fantásticos, dos índios considerados bárbaros e selvagens, dos caminhos e grotões. Medos que ainda hoje se apresentam em denominações que traduzem angústia, ameaça e dúvida: Turvo, Encruzilhada, Sumidouro, Brumado, Rio das Mortes. Atração provocada pelas riquezas do sertão: valiosas madeiras, plantas miraculosas, aves e animais desconhecidos e metais preciosos. Atração provocada pelo número incalculável de pagãos e de idólatras - os adoradores de ídolos que deveriam ser convertidos à fé cristã”. América Portuguesa – História do Brasil -Projeto MultiRio.

Foi desse tempo longínquo que brotou a mentalidade colonizadora que ainda predominava na época da fundação do Porto Tibiriçá. E ainda predomina se observarmos a contínua movimentação migratória em direção ao Norte do país.

Na época de homens como Jorge Tibiriçá e do seu primo médico Francisco, do empresário Arthur Diederichsen, do Coronel Sanches, do Capitão Whitaker, do Coronel Paulino Carlos e do Major Cecílio, o sentido geográfico da colonização era o então enorme e desconhecido Mato Grosso, o principal símbolo do universo selvagem, sendo depois substituído mais recentemente pela Amazônia. Em outras palavras, a ideia de aventurar no sertão, de se embrenhar nas matas em busca do “Eldorado” nunca foi abandonada pelas gerações modernas e contemporâneas. O espírito ou psicologia bandeirante continua vivo.

Havia também o espírito neocolonizador, dos visionários ou futuristas do capital industrial. Para descrever esse perfil nada melhor do que essa descrição que o Capitão Whitaker fez de Arthur Diederichsen, um dos sócios da Companhia de Viação:

“Seria, portanto, de clamorosa injustiça que o historiador que escrever a historia do desenvolvimento do Estado de São Paulo deixasse de reservar, na galeria dos Paulistas ilustres, um lugar de destaque para este Paulista emprehendedor e tenaz, que foi, de facto, quem abriu este Sertão, e aqui, invertendo milhares de contos de reis, por largos annos manteve sozinho, e em estado prospero, este grande centro de ordem e trabalho que sempre foi, e ainda é, a Companhia de Viação São Paulo Matto Grosso”.

A interiorização da metrópole portuguesa (Entradas e Bandeiras) se perpetuou no comportamento de todos os que se dispunham a explorar novas possibilidades de negócios e prosperidade. E o sertão sempre representou um campo vasto e inesgotável dessa ambição natural e aventureira. Mais ainda, fazer o percurso da aventura colonial é tomar o rumo contrário do Oceano Atlântico em direção aos Andes e ao Pacífico. É o percurso de quem deixa tudo para trás, de quem não tem nada a perder, do tudo ou nada. Quem penetra no sertão de peito aberto entra num caminho sem volta e por isso deve antes queimar os seus navios, só restando a possibilidade de avançar no imenso horizonte do Sol Poente.

Essa ideia de migração permanente ficou gravada durante séculos na mentalidade do imigrante europeu e foi sendo preservada através dos seus descendentes contemporâneos que, já radicados na América, migram no sentido do litoral para o interior. Mesmo os que parassem a sua marcha num determinado ponto do interior continuavam achando que o lugar que escolheram para ficar era o umbigo do mundo e que, tudo que estava além, mesmo que fossem somente alguns quilômetros, seria sempre o “fim de mundo” dos fidalgos europeus e também o “cafundó” dos resignados descendentes de africanos. Foi assim que, na mentalidade regional, Epitácio ganhou a fama de “fim de mundo” e o Mato Grosso tornou-se o “cafundó do Judas”. É o observador, cuja visão linear e rígida, vê somente o trajeto de uma linha que se interioriza em relação ao litoral e aos centros urbanos estabelecidos é a perspectiva quase sempre condicionada pela ideia e imagem de um lugar distante que ainda não existe, que não é estável, que não inspira confiança, sendo, portanto, inferior como referência em todos os aspectos.

Também contribuiu muito para a perpetuação desse preconceito, que absolutamente não atinge o aventureiro e o desbravador, por estar “depois”, de ser a “última” de todas as localidades o fato do Porto Tibiriçá estar no extremo Oeste de uma grande área que permaneceu milagrosamente isolada entre o fim de São Paulo e o começo de Mato Grosso. Reforçou também essa tal mentalidade, alimentando e nutrindo o imaginário da desconfiança para com o Poente, a agressividade extrativista madeireira e o estabelecimento das pastagens. Para os novos seguidores de Pizarro e do intrépido Raposo Tavares, colocando um pouco de lado a piedade cristã, a mata e seus habitantes selvagens, incluindo a humanidade indígena, representavam não uma ameaça, mas o obstáculo que mais cedo ou mais tarde teriam que ser removidos. Novamente a Cruz, a Espada e Fome seriam os principais estandartes da ocupação territorial.

E finalmente a implantação dos trilhos férreos, que foram lançados sobre a terra ainda bruta, não apenas como meio de transporte, mas, sobretudo, como um símbolo de poder e riqueza, emblemas de progresso e avanço contra o mundo desconhecido. Epitácio permanecia no fim da linha e esta maravilha da tecnologia industrial era uma referência cultural para quem vai e para quem fica, para quem avança e para quem permanece, para quem precisar romper novos obstáculos e para quem precisa conservar o que já foi conquistado.

A ferrovia era o limite entre a ousadia da necessidade e o reacionarismo dos estabelecidos. Quem não tem competência não se estabelece e se não há mais espaço onde paramos temos que ir adiante e nos estabelecermos em outros lugares, a qualquer preço. Ela funcionou durante muito tempo como o umbigo do mundo, uma a referência de onde se construíam as estações de chegada e de partida; e também o ponto de vista das pessoas sobre os acontecimentos ao seu redor, sobre o tempo presente, o tempo que passou e principalmente sobre o tempo futuro, o mundo ideal. Não foi à toa nem por coincidência, que as ferrovias brasileiras nasceram das mãos dos ingleses vitorianos, cujo império colonial partia de Londres penetrando nos mais inóspitos lugares do planeta.

As locomotivas do capitalismo industrial fizeram nos séculos XIX e XX o mesmo papel das caravelas ibéricas nos século XV e XVI. A mesma visão eurocêntrica do antigo colonialismo luso-espanhol surgiu com mais força e vigor no neocolonialismo industrial. Este “ferrocentrismo”, semelhante ao antigo, no orgulho e na prepotência, se considerava o ponto central entre o começo e o fim do mundo. As estações e os trilhos tornaram-se o inevitavelmente o ego social e político da conquista do sertão, uma régua histórico-temporal que mensurava a qualidade e a modernidade progressiva dos lugares por onde passava e dos povoados que foram surgindo atrás das suas pegadas.

Foi assim que, na gradação mensurada pela régua do olhar, imitada dos ares de superioridade da fidalguia ibérica e da aristocracia britânica, as estações de trem passaram a ser vistas não somente como unidades administrativas do transporte ferroviário, mas também como pontos de localização na logística de sentido puramente ideológico e imaginário. Foi assim também que muitas cidades do interior paulista, algumas hoje de grande porte urbanístico, tornaram-se, em suas respectivas fases de crescimento prestígio, o meio entre a grande Estação Júlio Prestes, na Capital, e o fim dos trilhos no Porto Epitácio. As cidades que estavam antes ou depois – tomando como referência a Baixa, a Média e a Alta Sorocabana – desses pontos “ferrográficos”, passavam a ser vistas como gradações ou degradações da qualidade civilizatória, de progresso ou de atraso. Se o trem atrasa em seus horários do dia- a- dia, as cidades também atrasam na longa duração do seu tempo histórico. Se a ferrovia não tivesse perdido a sua importância econômica e tecnológica tornando-se lenta e obsoleta para os padrões logísticos atuais, Epitácio, ainda por muito tempo, estaria destinada a ser não somente o fim da linha e a porta de entrada do fim mundo, mas certamente o fim da picada. Mas nem sempre foi assim.

Imaginário do sertão. Obra infanto-juvenil de Francisco Barros Júnior (1883-1969) com ilustrações de Oswaldo Storni (1909-1972). Editora Melhoramentos, 1973. O livro é ambientado na região florestal de Presidente Epitácio, Porto Tibiriçá e Porto XV. 






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